11 de out. de 2009

Tião Rocha

Uma sala de aula à sombra de cada árvore



Você já imaginou se, à sombra de cada árvore, existisse uma sala de aula? Pois esse é o sonho do educador Tião Rocha, personagem de uma história que o Globo Rural foi conferir.

Há muitos anos, Tião se perguntou se era possível criar uma escola ao ar livre, debaixo de uma mangueira. A apresentadora Helen Martins foi conhecer a resposta dessa dúvida em Minas Gerais, junto com o repórter cinematográfico Jorge dos Santos.

Noite de cinema na roça. Na tela: Tapete Vermelho, a história de uma família que sai de casa na zona rural com um sonho, ir à cidade ver um filme de Mazzaropi. Achar um cinema não foi nada fácil.

Em outro pequeno povoado, o cinema é no meio da rua, de graça e tem até pipoca. Essa é uma das novidades que se escondem nas pregas das montanhas do Vale do Jequitinhonha. É lá que fica Araçuaí, município que tem escola espalhada por todo canto, graças ao educador Tião Rocha.

“Qualquer lugar propício para criar um ambiente de aprendizagem, pode ser um espaço escolar, pode ser uma escola. Essa é a pergunta que eu me fiz 25 anos atrás, se era possível fazer educação sem escola ou se era possível fazer uma boa escola debaixo de um pé de manga”, diz.

Com a única certeza da escola que não queria criar, Tião buscou ajuda e formou rodas para discutira a ideia com os moradores da comunidade. Assim, o sonho de Tião virou o sonho de muitos: criar uma sala de aula embaixo de cada mangueira da zona rural. Aos poucos, a escola ao ar livre se transformou em realidade.

“Em uma reunião da comunidade, uma senhora disse: ‘Tião, essa escola é diferente da outra, porque essa a gente vê. A outra a gente vê o muro e o dia em que eu entro lá é quando não tem aula. Eu nunca vi meu menino aprendendo’. A comadre dela comentou: ‘É mesmo, ontem essa escola passou na minha porta três vezes’. Não é um bando de meninos que andam, é uma escola que anda”, conta.

Hoje, Tião tem um espaço dentro do maior colégio particular de Araçuaí, o Nazaré: é o projeto Ser Criança. Lá, tem roda pra todo lado. Tem roda de cantoria, roda para fazer boneca de pano, para pintar cartões com tintas tiradas da natureza.

Durante nossa visita, Tião rodou pra lá e pra cá, sempre se encantando com as crianças.

“É uma alegria, isso alimenta”, diz.

Todas essas crianças frequentam o ensino tradicional e, no outro período do dia, vão ao projeto para brincar. Brincar e aprender.

Jogo de damas muita gente conhece, mas o dessa escola é diferente: é misturado com a matemática. É a damática.

“Por exemplo, tem o 3+3. Se você errar, você não pode comer a pecinha”, conta a aluna Tamires Fernandes Oliveira.

“Eu acho que pelo fato de ela estar na 6ª série, em uma fase mais avançada que a minha, ela pode até ganhar de mim, mas nós temos a mesma capacidade no jogo”, diz Lucas Viana, adversário de Tamires na damática.

“Eu acho esta escola bem melhor, na outra a gente aprende o essencial. Aqui a gente aprende o essencial e mais”, diz Lucas.

No início do projeto Ser Criança, nem o essencial era aprendido na escola tradicional. Tião conta que o índice de reprovação era de 100%. Do desafio de melhorar a aprendizagem sem fazer reforço escolar, surgiu a damática.

“Havia uma garoto chamado Denisson, de 11 anos, que não sabia nada das quatro operações. Ele não sabia fazer contas, mas sabia jogar damas. Um dia, eu peguei um tabuleiro, enchemos com números, de forma aleatória, colocamos sinais de mais e de menos e colocamos uma regra: só pode jogar e fazer dama quem fizer uma conta. Em um instantinho, não sei o que aconteceu na cabeça do Denisson que ele aprendeu a fazer as contas e continuou jogando damas e ganhando”, conta Tião.

Vieram muitos outros jogos. No bornal, estão reunidos aqueles já avaliados nas escolas formais e aprovados.

“Nós temos, hoje, 80 jogos dentro do bornal. Jogos de português, matemática, história, ciências, geografia. Isso aqui virou um cassino, é uma jogatina danada. E todas têm um valor, o valor do aprendizado”, diz o educador.

Aos 15 anos, os jovens, sem trocadilho, têm que deixar o Ser Criança. Como não querem parar de aprender, criaram uma cooperativa que faz artesanato em madeira, metal, materiais recicláveis. A brincadeira é desenvolver novos produtos e, ao mesmo tempo, garantir um salário.

Renda é assunto sério no Vale do Jequitinhonha, uma região com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que avalia renda, educação e expectativa de vida, abaixo da média mineira e nacional.

O Jequitinhonha sempre foi conhecido como o vale da miséria, o vale da pobreza, mas quando o educador Tião Rocha chegou à região, há cerca de dez anos, ele levou uma ideia diferente: procurar por pontos luminosos. Pessoas que, com sua sabedoria e sua força de vontade, pudessem contribuir para modificar a comunidade.

“O IDH mede o lado vazio do copo, mede as carências. Não interessa olhar a carência. Isso já foi medido, estudado, analisado. Está cheio de coisa olhando para o lado vazio, o lado obscuro. Eu quero mexer com o lado cheio do copo. Eu quero entender o IPDH: o Índice de Potencial de Desenvolvimento Humano, que é a capacidade que as pessoas têm de acolhimento, de convivência, de aprendizagem e de oportunidade. A gente tem que ter a capacidade de só olhar pelo lado luminoso, para ver o brilho das pessoas. Se você junta um monte de pontos luminosos, você faz um feixe de luz, um holofote, sai energia, sai calor, sai transformação”, diz.

Para conhecer melhor Tião Rocha, nós fomos até Belo Horizonte. É na capital mineira que fica uma Organização Não Governamental (ONG) fundada por ele, o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), com sede na casa onde Tião nasceu e cresceu.

Uma foto que mostra o Tião ainda menino, parece ter sido tirada na roça.

“A minha casa era muito grande, um terreno enorme. Aqui a gente plantava café, milho, tinha muita fruta. Os meus pais saíram da roça, mas a roça não saiu deles”, diz.

Tião se formou em antropologia e foi professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Há quase 30 anos, deixou o cargo e criou o CPCD.

“Nos primeiros dez anos do CPCD, todos os nossos recursos vinham de fora do Brasil, de instituições e fundações internacionais. Depois de 95, quando nós começamos a ser reconhecidos pelos prêmios, a gente começou a ter a visibilidade nacional e vários parceiros nacionais”, conta.

A inspiração para o trabalho de uma vida começou na escola, com um trauma no primeiro dia de estudante.

“Nós fomos recebidos pela professora, que nos levou para uma sala de leitura bem no fundo da escola, abriu um livro e começou a ler: ‘Era uma vez, num país muito distante, havia um rei e uma rainha’. Eu levantei a mão e falei: ‘Professora, eu tenho uma tia que é rainha’. Ela falou: ‘Fica quieto menino, isso é história da carochinha, isso não existe”. E era verdade, eu tinha uma tia que era rainha de verdade, a tia gorda, Rainha Perpétua do Congado. Não era de mentirinha, não era história da carochinha. Esse processo traumático também me ajudou a buscar não outra escola, mas outras tias rainhas, outras rainhas de outros meninos, de outras dinastias”, conta.

(Reportagem tirada do Globo Rural de 11 de outubro de 2009 )

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